Por que pedalar é tão poderoso
Em 1884, o escritor inglês Edwin Abbott publicou um livro chamado Flatland (Planolândia), que seria utilizado décadas depois para explicar, de maneira didática e acessível, parte das teorias do físico alemão Albert Einstein. Esse livro, que continua atualíssimo, ajuda a ilustrar o que acontece com uma pessoa que começa a pedalar numa cidade.
A Planolândia é um mundo plano, onde só é possível se locomover para frente, trás, esquerda e direita. Não existe “cima” e “baixo”. Os moradores desse mundo plano são figuras geométricas – círculos, triângulos, quadriláteros e outros polígonos – embora eles próprios não saibam disso. É que, ali do plano, todos se enxergavam exatamente da mesma maneira: como linhas retas.
Um dia, o protagonista do livro é abduzido por uma esfera. Até aquele momento, ele só conhecia o mundo em duas dimensões. A esfera faz com que ele lentamente vá se desprendendo do chão e comece a voar, o que adiciona uma terceira dimensão à Planolândia. Essa nova dimensão mudou completamente a visão e a concepção que ele tinha do mundo.
Quando Einstein afirmou, na Teoria da Relatividade, que além das três dimensões espaciais, havia uma quarta (que ele chamou de espaço-tempo), poucos compreenderam o que aquilo significava. A história da Planolândia ajuda a compreender que adicionar dimensões nos faz enxergar, perceber e medir o mundo de outra maneira, mais complexa.
É aí que entra a bicicleta. Adotá-la como meio de transporte urbano tem um efeito inesperado – especialmente quando se tinha o costume de usar um meio motorizado antes, como ônibus ou carro. A bicicleta adiciona dimensões à experiência de percorrer a cidade.
De bicicleta em São Paulo, por exemplo, consolidamos a percepção de que a cidade não é plana porque experimentamos cada uma de suas ladeiras com nosso próprio corpo. Sabemos, depois de algumas semanas, qual a relação topográfica entre os bairros, e quais os mais acidentados e os mais regulares. Temos um ponto de vista mais alto do que quem está de carro e mais baixo do que quem está no ônibus, com a diferença de que, com alguma ginástica de cabeça e corpo, conseguimos ver em 360 graus. A bicicleta é tracionada por nossos próprios músculos, o que faz com que a velocidade seja controlada pelos limites físicos de cada um. Pedalando, ao contrário de quando se conduz um veículo motorizado, ninguém é mais rápido do que, fisicamente, consegue ser. Essa velocidade compatível com o corpo nos dá outra escala da cidade, dos prédios, fachadas, transeuntes, cores, cheiros, paisagens. Paramos na feira para um caldo de cana e uma conversa. Ouvimos as gaitas dos amoladores de facas, a madeira estalando dos vendedores de biju. O canto dos pássaros nos atenta para árvores frutíferas.
Por isso a experiência de pedalar é poderosa, porque percebemos todas essas dimensões da cidade com nosso corpo. E, segundo o filósofo francês Merlau-Ponty, é pelo corpo que a consciência aprende a refletir sobre o mundo. Os ciclistas, com essa visão complexa da cidade, talvez sejam os mais munidos de ferramentas para pensar em como melhorá-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário