segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MÁQUINA DE LEMBRAR

 

Máquina de lembrar

O neurobiólogo Ted Berger quer instalar um chip no cérebro de quem tem problemas de memória.

por Cecília Selbach

Um chip implantado no cérebro que evita a perda de memória causada por doenças como o mal de Alzheimer. É esse o objetivo que o neurobiólogo americano Theodore Berger, da Universidade do Sul da Califórnia, persegue em suas pesquisas. Não é pouca coisa. Se conseguir o feito, ele terá rompido uma das barreiras mais complexas da medicina.
Para chegar lá, Berger, que viu a mãe perder a memória após um derrame, está reinventando a pesquisa cerebral. Em vez de enxergar o centro de controle humano como uma máquina química e elétrica, o mais comum entre pesquisadores do tema, ele inovou ao convocar engenheiros para transformar em matemática os impulsos emitidos pelos neurônios. Depois, com números e equações em mãos, programou um chip capaz de realizar as tarefas do hipocampo, a área responsável pela memória. Na prática, é como se ele tivesse inventado um aparelho capaz de substituir neurônios da mesma maneira que uma prótese substitui um braço amputado.
No momento, Berger e sua equipe, formada por mais de 60 pessoas entre neurocientistas, engenheiros de computação e matemáticos, conseguem utilizar o chip em ratos. Os ótimos resultados têm ajudado a aumentar os financiamentos e o dinheiro à disposição. Nesse ritmo, Berger espera apresentar o chip para uso humano em 10 anos.
Por que você decidiu estudar o cérebro do ponto de vista da matemática?
Quando comecei a pesquisar, o cérebro era visto como uma máquina elétrica e química. A gente ensinava novos comportamentos a animais e observava a atividade elétrica dos neurônios enquanto eles aprendiam. À medida que o comportamento mudava, a atividade cerebral também mudava. Mas isso acontecia com padrões tão complexos que era difícil descrever. Foi aí que eu senti a necessidade de recorrer aos números para entender o que se passava. O que eu precisava era de um modelo matemático, algo vindo da engenharia. Lá, eles têm soluções para descrever padrões.
E o que você queria entender?
As células nervosas respondem ao mundo exterior com padrões particulares. Quando uma informação chega a uma parte do cérebro, é transmitida para outra parte e depois para outra. Nessas transmissões, o que ocorre nas células nervosas é que elas mudam de um padrão temporal para outro. Sei que não estou sendo claro, mas isso é parte do problema: tudo é complicado demais. Por exemplo: em dada situação, um animal está olhando um pedaço de comida. Você pode ver o padrão temporal, que é o ritmo em que os sinais elétricos se sucedem. E, se o animal olha para outra coisa – água, por exemplo, – você observa uma mudança nesse padrão. O que está acontecendo é que essa informação é codificada não por uma célula nervosa, mas por populações de células nervosas. Cada uma delas funcionando num padrão diferente, de modo que temos não um padrão, mas uma coleção deles.
Como essas idéias resultaram no chip do cérebro?
Não comecei pensando que iria construir um chip. Eu esperava entender como o cérebro codifica e forma a memória. Para isso, trabalhava com o hipocampo, a parte do cérebro que transforma memória de curto prazo em memória de longo prazo. Quando ouço sua voz, por exemplo, cada uma das 10 000 células que são importantes para eu gravar as características desse som está fazendo o seu próprio ta-tata-tatata-ta, como em um código Morse. São 10 000 células fazendo isso ao mesmo tempo. Depois, essa população de células manda a informação para outras 10 000 células. Como reproduzimos esse movimento? É claro que podemos fazer uma simulação de computador usando um software, mas seria muito mais eficiente e muito mais realista se pudéssemos fazer isso utilizando hardware.
Como o microchip funciona?
O conceito fundamental é que as informações que chegam aos neurônios, os inputs, são diferentes dos outputs, os padrões que saem. Se o que entra é ta-tata-ta, o que sai pode ser tatata-ta-ta. E cada neurônio transforma seus padrão de forma diferente. Nos perguntamos quais são as maneiras típicas com que esses neurônios transformam inputs em outputs e construímos um modelo matemático. O que o chip faz é transformar o padrão temporal que chega no padrão temporal que sai. Então, se você perde uma parte do cérebro, tudo que você tem de fazer é substituir a parte prejudicada pelo microchip – bem, isso é bastante coisa, por enquanto só conseguimos fazer essa simulação com 100 células.
Dá para entender o que as células estão dizendo umas para as outras?
Não precisamos entender, necessariamente. É possível fazer um modelo de microchip sem entender o que cada célula está dizendo. Mesmo assim, estamos começando a entender. Conseguimos apresentar imagens a animais e ver que células reagem ao ver essas referências visuais. Mudamos algum detalhe no conteúdo da imagem – trocamos a cor, inserimos um cavalo, tiramos uma pessoa – e observamos as transformações na atividade das células. Assim, dá para começar a entender como o cérebro representa um item específico.
O estudo pode ajudar a entender o que é e como funciona a consciência?
Sim. Quando eu e você olhamos para uma garrafa de vinho, podemos concordar que é uma garrafa de vinho e podemos falar um com o outro sobre isso. Mas eu não posso olhar dentro do seu cérebro e ver a imagem. Não sei o que acontece no seu cérebro e você não sabe o que acontece no meu. Mas sabemos que deve haver algum tipo de representação para garrafa de vinho. Como nossos cérebros codificam garrafa de vinho? Não sabemos. Agora, podemos usar essa oportunidade para começar a entender algo mais sobre como essas situações complexas que são memorizadas no cérebro. Porque, no momento, tudo que sabemos é que eu e você usamos as mesmas palavras quando estamos apontando para o mesmo objeto.

Existe risco de o chip danificar células saudáveis?
Sim. O microchip gera calor e tende a ser muito quente. Como as atividades cerebrais são sensíveis ao calor, ele poderia prejudicar algumas funções. Por isso, o microchip foi projetado para ficar no topo da cabeça, de modo que a temperatura se dissipe no ar. Ainda assim, os eletrodos que conectam o chip ao cérebro também aquecem. Temos de cuidar do número de eletrodos, usar o mínimo possível, para não causar danos. Exatamente quantos eletrodos precisamos é algo ainda a determinar.
É ético substituir a memória de alguém?
Nós somos geralmente mal interpretados nesse ponto. Não iremos substituir a memória das pessoas. O que estamos fazendo é substituir uma parte do cérebro que permite a formação da memória. Em um aparelho de som, há um aparato óptico que lê o cd, leva essa informação para o amplificador e dele para os alto-falantes. O que nós fazemos é mais como trocar o amplificador. E não o cd. Transformação é a palavra-chave aqui. Substituímos uma parte do cérebro que permite a transformação de inputs em memórias, como o amplificador transforma dados em algo que pode ser chamado de som.
O aparato é incapaz de recuperar memórias antigas?
Exato. As memórias que já tiverem sido perdidas em decorrência de uma doença ou acidente estarão perdidas. Essa pergunta é interessante para ajudar as pessoas a entender o que estamos fazendo. Nosso sistema ajuda a transformar novas memórias de curto prazo em novas memórias de longo prazo. E, se uma doença destruir as que já existem, não tem nada que possamos fazer a respeito.
Em 1999, sua mãe sofreu um derrame e passou a sofrer de problemas neurológicos. Isso influenciou seu trabalho?
A motivação mais importante para mim é ajudar as pessoas. Eu realmente quero ver o chip implantado em pacientes que tenham dificuldades para se lembrar de coisas. Quando artigos como esse são publicados, recebo e-mails do mundo todo de pessoas que sofreram danos cerebrais elas mesmas ou que têm um membro da família com o problema. É de partir o coração. Elas realmente sofrem, se sentem incompletas por causa da inabilidade de funcionar como antes – e são muito conscientes disso. Imploram para fazer parte dos experimentos e nós não estamos prontos ainda, faltam 10, 15 anos para isso. Pesquisa-se muito para ajudar quem não se locomove ou enxerga, mas há o mesmo sofrimento em não poder se lembrar de quem você é, do que fez. Minha mãe passou por isso. Ela se lembrava de coisas da minha infância, mas não de novas pessoas. A memória é grande parte da identidade humana, de sermos quem somos. Nós somos o que nós nos lembramos.
Em 10 ou 15 anos será possível usar a tecnologia em humanos?
Sim, essa perspectiva é realista. O progresso está sendo rápido, estamos avançando bem. Até o final do ano, vamos testar em ratos. Tentaremos usar nosso microchip para recuperar a memória em ratos sedados. Se formos bem-sucedidos, poderemos tentar em macacos. Pode até ser mais rápido que o previsto.

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