Máquina de lembrar
O neurobiólogo Ted Berger quer instalar um chip no cérebro de quem tem problemas de memória.
por Cecília Selbach
Um chip implantado no cérebro que evita a perda de memória causada por doenças como o mal de Alzheimer. É esse o objetivo que o neurobiólogo americano Theodore Berger, da Universidade do Sul da Califórnia, persegue em suas pesquisas. Não é pouca coisa. Se conseguir o feito, ele terá rompido uma das barreiras mais complexas da medicina.Para chegar lá, Berger, que viu a mãe perder a memória após um derrame, está reinventando a pesquisa cerebral. Em vez de enxergar o centro de controle humano como uma máquina química e elétrica, o mais comum entre pesquisadores do tema, ele inovou ao convocar engenheiros para transformar em matemática os impulsos emitidos pelos neurônios. Depois, com números e equações em mãos, programou um chip capaz de realizar as tarefas do hipocampo, a área responsável pela memória. Na prática, é como se ele tivesse inventado um aparelho capaz de substituir neurônios da mesma maneira que uma prótese substitui um braço amputado.
No momento, Berger e sua equipe, formada por mais de 60 pessoas entre neurocientistas, engenheiros de computação e matemáticos, conseguem utilizar o chip em ratos. Os ótimos resultados têm ajudado a aumentar os financiamentos e o dinheiro à disposição. Nesse ritmo, Berger espera apresentar o chip para uso humano em 10 anos.
Por que você decidiu estudar o cérebro do ponto de vista da matemática?
Quando comecei a pesquisar, o cérebro era visto como uma máquina
elétrica e química. A gente ensinava novos comportamentos a animais e
observava a atividade elétrica dos neurônios enquanto eles aprendiam. À
medida que o comportamento mudava, a atividade cerebral também mudava.
Mas isso acontecia com padrões tão complexos que era difícil descrever.
Foi aí que eu senti a necessidade de recorrer aos números para entender o
que se passava. O que eu precisava era de um modelo matemático, algo
vindo da engenharia. Lá, eles têm soluções para descrever padrões.
E o que você queria entender?
As células nervosas respondem ao mundo exterior com padrões
particulares. Quando uma informação chega a uma parte do cérebro, é
transmitida para outra parte e depois para outra. Nessas transmissões, o
que ocorre nas células nervosas é que elas mudam de um padrão temporal
para outro. Sei que não estou sendo claro, mas isso é parte do problema:
tudo é complicado demais. Por exemplo: em dada situação, um animal está
olhando um pedaço de comida. Você pode ver o padrão temporal, que é o
ritmo em que os sinais elétricos se sucedem. E, se o animal olha para
outra coisa – água, por exemplo, – você observa uma mudança nesse
padrão. O que está acontecendo é que essa informação é codificada não
por uma célula nervosa, mas por populações de células nervosas. Cada uma
delas funcionando num padrão diferente, de modo que temos não um
padrão, mas uma coleção deles.
Como essas idéias resultaram no chip do cérebro?
Não comecei pensando que iria construir um chip. Eu esperava entender
como o cérebro codifica e forma a memória. Para isso, trabalhava com o
hipocampo, a parte do cérebro que transforma memória de curto prazo em
memória de longo prazo. Quando ouço sua voz, por exemplo, cada uma das
10 000 células que são importantes para eu gravar as características
desse som está fazendo o seu próprio ta-tata-tatata-ta, como em um
código Morse. São 10 000 células fazendo isso ao mesmo tempo. Depois,
essa população de células manda a informação para outras 10 000 células.
Como reproduzimos esse movimento? É claro que podemos fazer uma
simulação de computador usando um software, mas seria muito mais
eficiente e muito mais realista se pudéssemos fazer isso utilizando
hardware.
Como o microchip funciona?
O conceito fundamental é que as informações que chegam aos neurônios,
os inputs, são diferentes dos outputs, os padrões que saem. Se o que
entra é ta-tata-ta, o que sai pode ser tatata-ta-ta. E cada neurônio
transforma seus padrão de forma diferente. Nos perguntamos quais são as
maneiras típicas com que esses neurônios transformam inputs em outputs e
construímos um modelo matemático. O que o chip faz é transformar o
padrão temporal que chega no padrão temporal que sai. Então, se você
perde uma parte do cérebro, tudo que você tem de fazer é substituir a
parte prejudicada pelo microchip – bem, isso é bastante coisa, por
enquanto só conseguimos fazer essa simulação com 100 células.
Dá para entender o que as células estão dizendo umas para as outras?
Não precisamos entender, necessariamente. É possível fazer um modelo
de microchip sem entender o que cada célula está dizendo. Mesmo assim,
estamos começando a entender. Conseguimos apresentar imagens a animais e
ver que células reagem ao ver essas referências visuais. Mudamos algum
detalhe no conteúdo da imagem – trocamos a cor, inserimos um cavalo,
tiramos uma pessoa – e observamos as transformações na atividade das
células. Assim, dá para começar a entender como o cérebro representa um
item específico.
O estudo pode ajudar a entender o que é e como funciona a consciência?
Sim. Quando eu e você olhamos para uma garrafa de vinho, podemos
concordar que é uma garrafa de vinho e podemos falar um com o outro
sobre isso. Mas eu não posso olhar dentro do seu cérebro e ver a imagem.
Não sei o que acontece no seu cérebro e você não sabe o que acontece no
meu. Mas sabemos que deve haver algum tipo de representação para
garrafa de vinho. Como nossos cérebros codificam garrafa de vinho? Não
sabemos. Agora, podemos usar essa oportunidade para começar a entender
algo mais sobre como essas situações complexas que são memorizadas no
cérebro. Porque, no momento, tudo que sabemos é que eu e você usamos as
mesmas palavras quando estamos apontando para o mesmo objeto.
Existe risco de o chip danificar células saudáveis?
Sim. O microchip gera calor e tende a ser muito quente. Como as
atividades cerebrais são sensíveis ao calor, ele poderia prejudicar
algumas funções. Por isso, o microchip foi projetado para ficar no topo
da cabeça, de modo que a temperatura se dissipe no ar. Ainda assim, os
eletrodos que conectam o chip ao cérebro também aquecem. Temos de cuidar
do número de eletrodos, usar o mínimo possível, para não causar danos.
Exatamente quantos eletrodos precisamos é algo ainda a determinar.
É ético substituir a memória de alguém?
Nós somos geralmente mal interpretados nesse ponto. Não iremos
substituir a memória das pessoas. O que estamos fazendo é substituir uma
parte do cérebro que permite a formação da memória. Em um aparelho de
som, há um aparato óptico que lê o cd, leva essa informação para o
amplificador e dele para os alto-falantes. O que nós fazemos é mais como
trocar o amplificador. E não o cd. Transformação é a palavra-chave
aqui. Substituímos uma parte do cérebro que permite a transformação de
inputs em memórias, como o amplificador transforma dados em algo que
pode ser chamado de som.
O aparato é incapaz de recuperar memórias antigas?
Exato. As memórias que já tiverem sido perdidas em decorrência de uma
doença ou acidente estarão perdidas. Essa pergunta é interessante para
ajudar as pessoas a entender o que estamos fazendo. Nosso sistema ajuda a
transformar novas memórias de curto prazo em novas memórias de longo
prazo. E, se uma doença destruir as que já existem, não tem nada que
possamos fazer a respeito.
Em 1999, sua mãe sofreu um derrame e passou a sofrer de problemas neurológicos. Isso influenciou seu trabalho?
A motivação mais importante para mim é ajudar as pessoas. Eu
realmente quero ver o chip implantado em pacientes que tenham
dificuldades para se lembrar de coisas. Quando artigos como esse são
publicados, recebo e-mails do mundo todo de pessoas que sofreram danos
cerebrais elas mesmas ou que têm um membro da família com o problema. É
de partir o coração. Elas realmente sofrem, se sentem incompletas por
causa da inabilidade de funcionar como antes – e são muito conscientes
disso. Imploram para fazer parte dos experimentos e nós não estamos
prontos ainda, faltam 10, 15 anos para isso. Pesquisa-se muito para
ajudar quem não se locomove ou enxerga, mas há o mesmo sofrimento em não
poder se lembrar de quem você é, do que fez. Minha mãe passou por isso.
Ela se lembrava de coisas da minha infância, mas não de novas pessoas. A
memória é grande parte da identidade humana, de sermos quem somos. Nós
somos o que nós nos lembramos.
Em 10 ou 15 anos será possível usar a tecnologia em humanos?
Sim, essa perspectiva é realista. O progresso está sendo rápido,
estamos avançando bem. Até o final do ano, vamos testar em ratos.
Tentaremos usar nosso microchip para recuperar a memória em ratos
sedados. Se formos bem-sucedidos, poderemos tentar em macacos. Pode até
ser mais rápido que o previsto.
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